"Nem tudo o que balança cai", diz o povo. Não foi esse o caso.
O soarismo, revestido do mais duro radicalismo de esquerda, foi esmagado como um insecto. Sócrates ficou politicamente como está fisicamente: coxo. Cavaco, como nunca iludiram as sondagens, ganhou por maioria absoluta – com surpresa apenas para a esquerda mais marreta.
Dizia o Vitorino, na noite Alegre, das alturas do seu pedestal de messias dos media, guterrista independente e insuspeito comentador da televisão do Estado: "os números não me alteram as convicções". Podia ser o mote dos utópicos. Todos os utópicos presidenciais ganharam, por minoria absoluta. O seu profundo alheio à realidade permitiu-lhes gritar "Soares é fixe" e louvar Jerónimo pelos seus expressivos e "acima das sondagens" 8.5%! Só na noite das eleições acabaram por revelar que as suas candidaturas não eram apenas para derrotar a direita – eram também para servir de "exemplos de perserverança" e "milagres de cidadania"! Se tivessem passado a mensagem mais cedo que seria da "vitória tangencial" de Cavaco… Era capaz de ter ficado a menos de 30 pontos do segundo classificado!
Foi na noite das eleições que a esquerda se revelou. Mário Soares revelou pela primeira vez "fair-play". Disse que aceitava com "fair-play" a vitória do candidato que acusava de ir usurpar Belém em nome da direita e violar a Constituição. Alegre, que tinha comparado a sua luta ao 25 de Abril, acabou afinal por aceitar o "25 de Abril" falhado tão bem como quando desertou do exército. Dias depois, até o Governo PS aceitava democraticamente (ou deverei dizer "retoricamente"?) aquele que, dias antes, apontava como desestabilizador e golpista de Estado.
Perguntava Mário Crespo, na SIC Notícias, se o discurso anti-fascista usado nestas eleições ainda teria cabimento num país pertencente à União Europeia. Até o hiperactivo deputado do século XIX, Vicente Jorge Silva, concordou que não. Se ao menos o Mário Crespo tivesse feito a pergunta mais cedo…
Alheio, por sua vez, à histeria dos outros candidatos, Cavaco e a maioria dos eleitores seguiram o seu caminho. Resta fazer uma análise do que foi Sampaio.
Sidónio Pais ficou conhecido como o "presidente-rei". Sampaio ficou conhecido, no primeiro mandato, como o "presidente-vegetal". Fez pouco mais do que discursos prolixos e sem interesse para a Nação. Era o tempo de Guterres e todo o PS parecia unido em torno da engorda da malta socialista da função pública e institutos redundantes mas capazes de atrair o dinheiro e a influência. Foi a idade dourada dos favores para o PS – havia dinheiro e havia poder. Sampaio, iminentemente partidário, não tinha razões para ser interventivo. Para quê intervir se as coisas iam bem? A única intervenção que fez foi um favor a Guterres: a resolução da questão de Barrancos. Segundo o lema "unir a lei com a tradição", sugeriu ao Parlamento uma lei de excepção para a terra que não queria cumprir a lei nacional. A demonstração de fraqueza foi paga com o esquecimento da polémica nos media. O PS não teve mais o incómodo de decidir entre o uso da força para cumprir a lei ou o uso da fraqueza para manter a popularidade. Sampaio interveio, os animais continuaram a ser retalhados em público e a questão foi esquecida.
O segundo mandato foi diferente. Guterres, enterrado no pântano criado pelo seu governo, decidiu afastar-se enquanto a bomba não rebentava e o seu partido ainda capitalizava um pouco de popularidade. Depois de criados inúmeros problemas que durarão gerações a amenizar, o PS fugiu do governo e negou a culpa. O plano era de longo prazo. A oposição ficava com o estoiro dos problemas para que o PS ficasse ligado, nos débeis raciocínios da populaça, à "época das vacas gordas" e depois surgir outra vez como salvador da democracia, da participação, da solidariedade, remédio laico e republicano para o coração dos portugueses. Entretanto, a novela retórica dos socialistas bastaria para confundir a populaça e dissolver as culpas.
O pobre Sampaio viu-se a ser sugado por este descarregar de autoclismo. Ele não queria, ele tentou tudo para resolver a questão sem ter de se envolver, mas o PS forçou-o a convocar eleições antecipadas. A tremer, o antigo apoiante de Otelo e semi-presidente pré-soarista da Capital foi forçado, pelo voto popular, a entregar o poder à coligação PSD-PP, de maioria absoluta.
Não demorou para que o PS prosseguisse o seu plano, criticando o novo governo por ter, em meses, criado a crise económica, aumentado o desemprego e tudo o que se lembraram. O PS sabe que os portugueses são um público fácil. Para eles pode-se ter qualquer tipo de discurso populista, desde que seja bem formatado. Ao estilo de sempre do PS, roçando a extrema-esquerda, a colagem de partidos de centro e centro-direita ao fascismo resulta maravilhosamente, em geral, apesar do fascismo ser um fenómeno exclusivamente italiano e da época de Mussolini. À retórica socialista a verdade nunca interessou e a realidade e a história sempre foram coisas tidas como muito maleáveis. Mais ou menos como para Estaline, por coincidência.
Mas passado um ano e tal as coisas começaram a correr menos bem para o PS. Ferro Rodrigues envolveu o partido no escândalo da pedofilia – e até a própria Assembleia, aquando da triste festança pela libertação de um arguido da sua cor. O partido começava a descobrir que Ferro Rodrigues tinha tanto jeito para a política como tinha o meu avô para fazer web pages. Figuras como a venenosa Ana Gomes e escândalos como o de Felgueiras também não ajudavam muito.
De repente, porém, um milagre para os laicos e republicanos: o PM decide demitir-se para aceitar o cargo de Presidente da Comissão Europeia. Era a oportunidade de ouro. Por ela tudo valia a pena, até renegar a Europa. Se até aí o PS era um partido convictamente europeísta, para empolar o caso e desfazer Durão Barroso passou a tirar toda a importância à UE e a tratar o caso como se fosse de traição. Se até aí o PS criticava Durão Barroso por estar à frente do Governo, a seguir passou a criticá-lo por sair. Ir para a União Europeia – eis o maior crime de lesa-pátria, a maior traição, que um dirigente poderia cometer a partir dali, talvez desde sempre. Com estas preocupações por Portugal saiu o PS para as televisões, para as ruas, para os corredores de S. Bento, para os tapetes de Belém, a bradar por justiça. E a justiça eram eleições antecipadas, pois tão fragilizados estavam os "partidos de direita" que até com Ferro Rodrigues lá chegariam.
Com isto se viu o pobre Sampaio, outra vez, metido em confusões que não tinha pedido, mesmo quando acabava de chorar o Euro 2004. Por um lado a pressão dos grandes grupos europeus para que a transição de poder não levantasse obstáculos à saída de Durão; por outro a pressão da família socialista, o seu partido, os seus amigos, para que se decidisse por eleições antecipadas e o PS conseguisse o poder. Sampaio ficou branco, pálido, cadavérico. Convocar eleições antecipadas não era bom para a economia, seria um desastre, mas tal era o menos, pois teria no novo governo um aliado precioso, que ajudaria ao lavar de mãos. Também não era bom para a sua imagem, porque o povo podia perceber que o governo de Durão e Portas era de maioria absoluta, podia até lembrar-se que tinha votado em programas e não em pessoas, como dizia na Constituição, e isso há apenas dois anos. Se a maioria dos jornalistas não fossem comprados, era capaz de resultar muito mal. Fosse como fosse, a imagem também era o menos, já que também já não era grande espingarda e o sacrifício pelo bem comum do PS era uma coisa honrosa. No entanto, no entanto, as vozes da Europa não se calariam. E enquanto em Portugal as vozes são apenas vozes, lá fora é para levar a sério. Que podia o pobre Sampaio contra a vontade da Alemanha, da França e da Inglaterra? E os interesses nacionais? Não teríamos de ter uma boa posição para negociar com esses países, ainda mais pertencendo à UE? Como é que lixar a presidência do Conselho poderia trazer algum bem para Portugal e algum descanso para Belém? E se deixassem de retocar as fotografias que tirava ao lado de monarcas e presidentes mais altos e com melhor aspecto?
Entre puns nervosos, Sampaio convocou o Conselho de Estado, que lhe disse que se Ferro Rodrigues fosse Primeiro-Ministro ele seria lembrado, não como um chato supra-partidário, mas como um cretino ao serviço do PS. Seria visto como co-responsável pelo afundamento total do país por ter permitido que alguém tão visivelmente inábil como Ferro Rodrigues chegasse a PM. Seria como pôr ao leme o macaco – mal por mal, mais valia não estar lá ninguém.
Sampaio soltou o pum mais estrondoso da sua vida, tão grande que fez tremer as pinturas da Paula Rego e os caixotes de condecorações honoríficas (sempre à mão para qualquer ataque de filantropia). Os seus intestinos davam voltas mais tortuosas que a miserável república onde nascera. "Mas é a democracia…" – dizia num andar apressado pela sala – "…não me vão culpar…" – "…o Ferro Rodrigues é meu amigo, não lhe posso fazer isto…" – ficava amarelo – "… não posso deixar o Santana, a direita… o que diria o Otelo?…" – "…mas a Alemanha, a França, o país…". Sem sangue, caiu para cima de um caixote de condecorações made in China destinado a destacar as figuras do PCP responsáveis pelo falhanço do golpe comunista e que deram assim um contributo decisivo para a democracia.
"Dr. Sampaio! Dr. Sampaio!" – berrou uma empregada de limpeza notoriamente preocupada com as condecorações. "- Ó minha senhora" – disse meio vivo – "que faço eu à Assembleia?". "Sr. Dr., pode fazer isto à portuguesa: adia um bocadinho. Diz aos seus amigos que vai acabar com a direita, mas mais tarde, quando Durão estiver instalado e a Europa concertada. Entretanto pode ser que eles o ajudem a esmigalhar o novo governo, que será mais frágil. Não são tantos deles jornalistas e analistas? Até há políticos entre os seus amigos, penso eu de que". Sampaio ficou menos pálido – "mas ó minha senhora, e que faço eu aos comunistas? Vão armar uma confusão diabólica, convocar mais manifestações por SMS espontâneo, chamar-me traidor em horário nobre!". "Os comunistas, Dr. Sampaio, são os comunistas. O seu papel é armar confusão. Vão protestar seja qual for a decisão". Sampaio olha para o museu… "É bem verdade, bem me lembro… Minha senhora, pelo seu valoroso contributo, em nome de todos os portugueses ofereço-lhe o Colar da Ordem da Torre e da Espada!". "Ó Sr. Dr., muito obrigada, mas já tenho dois desses e nem sou militar. E se fosse um Infante?". "Nem pensar, minha senhora. Não quero que digam que não recompenso condignamente as portuguesas e os portugueses".
Foi mais ou menos assim que Sampaio decidiu aceitar Santana Lopes como novo PM. Algumas figuras do PS menos atentas, vendo um dos seus favorecer outro partido, gritaram "traição!". Ferro Rodrigues, num agravar da crise de nervos, chamou "derrota" ao facto de não ter conseguido influenciar o seu amigo Sampaio e demitiu-se entre lágrimas. Para os socialistas mais mediáticos, a Constituição parecia ser uma coisa mais longínqua do que a Guerra Fria. Era uma questão de solidariedade – Sampaio tinha de ter favorecido os que o puseram "lá", tinha que unir outra vez a lei com a tradição, que era a do Rato.
Sampaio sentiu-se sozinho. O Palácio de Belém tornara-se um espelho do seu crâneo: demasiado grande e oco. Sentia que se podia fazer uma sopa com a sua cabeça – para um regimento inteiro. Mas já não havia retorno, era ir em frente. Os seus aliados fariam agora o trabalho que era suposto fazer: culpar Santana Lopes pela crise económica, pela subida do desemprego, pelos conflitos sociais, pelo aquecimento global, mesmo antes de começar. Aproveitariam todos os pretextos para levantar escândalo. Ele já não era bem visto, tinha muitos inimigos dentro do próprio partido, estava condenado sem grande esforço. Era esperar.
Sampaio esperou – com a paciência de uma velha. Os escândalos vieram, o bode expiatório estava instalado na consciência colectiva. Só faltava esperar por um Orçamento de Estado tão desastroso que fosse a última gota, a derradeira razão para finalmente se dissolver a maldita Assembleia. Ao ver o OE, porém, Sampaio teve uma surpresa: era potencialmente popular, se não mesmo bom! Melhorias na inspecção fiscal, aumentos da função pública, aumentos das reformas… Saindo isto, a imagem de Santana Lopes era bem capaz de mudar na função pública. Era capaz de começar a ser visto como mártir, vítima dos interesses aristocráticos. Isso não podia acontecer. Sampaio agiu tão rapidamente quanto pôde: sem tempo sequer para escrever um discurso coerente e com justificações concretas, Sampaio precipitou-se para as televisões a anunciar que tinha decidido dissolver a Assembleia pelas razões "que todos sabiam". Até se esqueceu, a princípio, de consultar o alto Conselho de Estado! Disse o que tinha a dizer e sentiu-se aliviado. Aliviou um pouco o arco das costas e até esfregou as mãos de contente. Esfregou-as outra vez, e com mais força, quando o PS teve maioria absoluta. Rita Sampaio já não via tantos sinais de vida no marido desde Abril de 1974, quando levantou um punho cerrado.
Só um revés neste processo perturbou o presidente: o facto das linhas gerais do OE já andarem anunciadas na praça e, em caso de anulação do mesmo, a função pública o poder culpar de um forte atraso dos aumentos previstos. Ora um presidente não pode brincar com a função pública. Principalmente um presidente oscilante e sem justificações. Era necessário outra vez a magia de "unir a lei com a tradição" – e assim foi. Sampaio dissolveu a Assembleia porque continha um governo de maioria absoluta alegadamente prejudicial à Nação pelas "razões que todos sabiam", mas pediu a esse mesmo governo, ainda em funções, para aprovar o OE. Feito isto, a campanha anti-Santana e anti-Portas executada por todos os quadrantes políticos e comunicação social poderia seguir o seu caminho sem vozes discordantes, abrindo alas a uma nova era no PS. É certo que não seria uma maioria absoluta ganha por um programa, ou por um líder carismático, é certo que até Adriano – não o César, o Macaco – ganharia a Santana Lopes, mas caramba, era uma vitória histórica, era a primeira maioria absoluta do PS, era obra. As sábias palavras de Gabriel Alves, mentor espiritual, ecoavam-lhe na memória: "a selecção não jogou nem bem nem mal, antes pelo contrário". Sampaio sentia-se grande, tão grande que quase chegava aos ombros da mulher.
Assim Sampaio atingiu o seu auge na Presidência, oferendo a maioria absoluta ao seu partido. O primeiro auge tinha acontecido na lacrimosa distribuição de ordens honoríficas pelos segundos classificados do Euro 2004, mas não se lhe comparava. O seu papel de presidente de todos os portugueses capazes de votar PS estava cumprido. Não seria carregado aos ombros para fora de Belém, mas também não tinha de se arrastar pela cloaca das traseiras. Sairia de cabeça erguida – como uma couve. Podia não ostentar a virtude do patriotismo, mas a da amizade estava lá – no seu sorriso enjoado, no seu olhar devoto, na sua espinha curvada de tanta diligentia. Coerente, solidário. "Um por todos", como dizia um dos seus primeiros cartazes de campanha. E assim foi durante uma década: um por todos os socialistas.
Comentava eu há uns dias as seguintes barbaridades: «Pensava que Sampaio ouvia bem, mas nem isso. Segundo as suas últimas declarações enquanto PR, disse que não ouviu nenhum português insultá-lo nos 10 anos que esteve em Belém. Dado que nunca demostrou capacidade de sarcasmo, e mesmo que fosse distraído teria à mão as melhores fontes de informação do país, isto prova que o homem é surdo. Sampaio, soletra lá isto: b-a-n-a-n-ó-i-d-e. Bananóide. Palhaço? Imbecil. Cretino. Cabeça-de-cenoura. Monstro da lagoa cor-de-rosa. Espantalho do Restelo, marioneta do Rato, capacho de entrada de Portugal. Isto és tu, Sampaio. E sou eu que o digo, e eu sou português.»
Ponderei. Para quê tanta animosidade, tanta injustiça, contra uma criatura que afinal de contas fez o seu melhor num ambiente adverso? Poder-se-á culpar um bróculo, por exemplo, por não promover pactos de regime entre os maiores partidos com vista à resolução dos problemas nacionais? Não, seguramente. Um bróculo pode-se pôr a cozer em lume brando, com uma colher de chá de sal marinho, entre 10 a 15 minutos. Um país de bom senso faria o mesmo a Sampaio. Mas Portugal é Portugal e há que confiar na natureza. O tempo encarregar-se-á de fazer o reino animal dominar sobre o vegetal, como fez no resto do planeta.